Às vezes, a vida nos provoca uma estranha sensação de déjà vu, como se estivéssemos seguindo um roteiro pré-existente, revivendo cenas já vistas, com falas ensaiadas e destinos previsíveis. Mas quem está escrevendo esse script?
Em uma era de algoritmos e entretenimento sob demanda, nossas escolhas, desejos e comportamentos são silenciosamente manipulados, e a autonomia é uma ilusão conveniente. O entretenimento virou uma ferramenta de ensaio social e, quando a vida imita a arte, talvez seja porque a arte liderou o caminho. É nesse ponto que o debate se intensifica: será que estamos apenas assistindo à ficção ou sendo moldados por ela? O que parece espontâneo é, na verdade, o resultado de mecanismos invisíveis de condicionamento, sistemas que operam por meio de sugestões personalizadas, narrativas calculadas e estímulos incessantes à atenção e ao consumo. No mundo digital, não são mais os recursos naturais que definem o poder, a mente humana tornou-se o petróleo invisível do século.
As produções cinematográficas têm ganhado status de ferramenta pedagógica e política, sendo cada vez mais levadas a sério por educadores, formuladores de políticas públicas, e até governos. No Reino Unido, uma minissérie chegou a ser oficialmente recomendada como instrumento de conscientização nas escolas. No entanto, é preciso cautela: embora envolventes, essas obras são construções fictícias, frequentemente desprovidas de respaldo científico ou diálogo com pesquisas sérias sobre o desenvolvimento juvenil. Quando passam a ser tomadas como referência, podem acabar distorcendo a realidade, mascarando problemas reais ou, em alguns casos, até criando problemas que não existiam. O entretenimento antecipa o problema, molda a percepção pública e, por fim, influencia o comportamento real. Essa é a lógica sutil, porém diabólica, da programação preditiva.
Programação preditiva ou oráculos do destino?
A inquietante teoria da programação preditiva sugere que os filmes e séries não só refletem, mas também antecipam e naturalizam futuros comportamentos e eventos. Segundo essa ideia, o cinema, a televisão e a literatura seriam usados para introduzir sutilmente determinados temas ou acontecimentos ao público, antes que eles se concretizem no mundo real. Uma forma de doutrinação coletiva que prepara a sociedade para aceitar transformações, sem resistência. Um dos exemplos recentes mais citados de programação preditiva é o filme Contágio, de 2011, dirigido por Steven Soderbergh. A trama acompanha a disseminação global de um vírus letal originado na Ásia, os colapsos dos sistemas de saúde, a corrida por uma vacina e o caos social gerado pela desinformação midiática. Quase uma década depois, o mundo veria a pandemia da COVID-19 se desenrolar com uma semelhança assustadora. O filme não apenas antecipou os eventos com precisão, como também preparou, conscientemente ou não, o imaginário das massas para aceitá-las com mais naturalidade.
A série Black Mirror é praticamente um laboratório cinematográfico de programação preditiva. Entre os exemplos mais evidentes, destaca-se o episódio “Nosedive”, exibido em 2016, que retrata uma sociedade em que todas as interações sociais são avaliadas por meio de um sistema de pontuação pública. Pouco tempo depois, a China anunciou seu sistema de “crédito social”, baseado exatamente nessa lógica de monitoramento constante, com recompensas e punições definidas a partir do comportamento e da reputação online. O que parecia distopia virou protocolo. Em um universo totalitário, em que a popularidade digital determina acesso a bens, serviços e status social, sinalizar a virtude nas redes não é mais sobre vaidade, mas sobre sobrevivência. Não se trata de alimentar o ego, mas de garantir o alimento à mesa.
Séries como Black Mirror não apenas antecipam futuros distópicos, mas moldam o imaginário comum e atenuam o impacto de traumas sociais, ajudando a normalizar o que antes pareceria inaceitável. No entanto, quando se trata de previsões improváveis que se concretizam, o troféu de ‘roteirista do destino’ vai, sem dúvida, para Os Simpsons. Nada ilustra melhor o poder profético da série do que o episódio de 2000, que ousou prever o improvável: Donald Trump na presidência dos Estados Unidos. Uma sátira que virou realidade dezesseis anos depois. Esse tipo de “previsão” levanta questões inquietantes: estaríamos consumindo, disfarçados de entretenimento, scripts do que ainda está por vir? Seriam os roteiristas oráculos do futuro, ou há intencionalidade por trás? Embora o debate siga em aberto, não há como negar que o audiovisual exerce uma influência perturbadora, e por vezes perigosa, na formação da visão de mundo de crianças e adolescentes. Em uma fase marcada por inseguranças, busca por pertencimento e construção de identidade, a exposição constante a narrativas que romantizam distopias, violência ou apatia emocional pode moldar comportamentos, valores e expectativas de forma profunda e duradoura.
Adolescentes na mira
Você já assistiu a um filme ou série sobre adolescentes e, sem saber explicar exatamente o porquê, sentiu um nó na garganta, uma inquietação ou até uma ansiedade inesperada? Isso não é coincidência, é técnica. Produções mais realistas ou experimentais sabem exatamente onde tocar. Capturam, sem filtros, a vulnerabilidade dessa fase da vida e reativam feridas emocionais que julgávamos superadas. A forma como a câmera se movimenta, a ausência de cortes, o som ambiente ou mesmo os silêncios, tudo é pensado para nos arrastar de volta à adolescência. Mas, mais do que nos fazer lembrar, essas obras moldam como os adolescentes atuais sentem, reagem e se percebem. O cinema não é apenas um espelho para os jovens, é também um arquiteto secreto de sua identidade.
E é justamente na adolescência, esse território instável, intenso e muitas vezes incompreendido, que essa influência encontra terreno fértil. Não à toa, séries e filmes que retratam essa fase têm ganhado força nos últimos anos, utilizando diferentes linguagens estéticas para traduzir suas dores, excessos e contradições. Algumas obras narram as histórias de jovens em crise de tal maneira que nos colocam dentro da pele desses personagens. Mais do que entretenimento, essas produções funcionam como gatilhos psíquicos, revelando feridas emocionais, traumas familiares e as pressões sociais que moldam o comportamento dos jovens. Quando um adolescente vê algo na tela, ele não apenas assiste: ele absorve, ensaia, normaliza. Foi assim com 13 Reasons Why, cujo retrato gráfico do suicídio da protagonista gerou intensos debates sobre os impactos da série na saúde mental dos jovens. O mesmo se deu com Euphoria, em que comportamentos autodestrutivos são retratados com tanta carga estética que acabam sendo assimilados como legal, “cool”.