A essência do mal sempre foi um tabu dentre as sociedades. Era mais fácil ignorá-lo e expurgá-lo, do que enxergá-lo como desafio. Mas, o mal é um enigma a ser considerado, pois o fato de muitos ignorarem sua existência não o retira do universo dos problemas humanos. O entendimento do mesmo deveria ser um convite ao bom entendimento da vida e suas mil facetas. Uma provocação de caráter enigmático, que deve ser explorada e combatida para o bom exercício da virtude.
No antigo mundo, a interpretação do mal poderia se resumir ao pecado, ao sofrimento e à morte. Enquanto Aristóteles argumentava sobre o valor da filosofia e do sentido na vida, a religião rotulava e criava um mal comum. Mas, a experiência política do século XX nos revelou uma nova modalidade de mal. O surgimento de regimes totalitários abriu um novo espectro sobre o conceito, obrigando-nos a reavaliar a ação humana e a história dos povos. Novos formatos do ser humano foram revelados, inclusive em figurações monstruosas, que Kant previu no século XVIII como ‘uma perversidade do coração’.
“A história da natureza começa pelo bem, pois é obra de Deus; a história da liberdade começa pelo mal, pois é obra do homem.”
Immanuel Kant
Considerada um dos nomes mais importantes da filosofia do século XX, Hannah Arendt (1906 – 1975) nasceu em uma família judia e viveu os horrores perpetrados pelo Nazismo. Ficou conhecida por sua participação como jornalista do New Yorker no julgamento de Adolf Eichmann, um oficial da Schutzstaffel, ou também conhecida por SS, um serviço secreto nazista. Eichmann era responsável por organizar a logística que envolvia a “solução final” e fora capturado pelas forças israelenses. As observações de Hannah Arendt em relação ao julgamento se baseiam na percepção sobre o quão comum seria Eichmann, pois a todo momento ele se defendia dizendo que estava apenas cumprindo ordens. Para Arendt, Eichmann era desprovido de um senso de pensamento crítico, no sentido de não questionar nada, apenas executar ordens e de nunca refletir sobre seus atos. Sua avaliação foi execrada e ela foi perseguida como uma judia antissemita, pois observou que Eichmann não era mal, mas sim incapaz de pensar. Ela, então, concluiu que o mal poderia ser banal.
O conceito de Hannah Arendt a respeito do mal é embasado em seu estudo sobre o fenômeno totalitário predominante à época. Ela definiu o típico cidadão moderno como aquele que atua sob ordens, obedecendo cegamente a um critério ou governo, incapaz de raciocinar por si só. Essa supremacia da obediência pressupõe a abolição da espontaneidade e do pensamento, tolhendo a capacidade humana de iniciar algo novo com seus próprios recursos. Nessa ausência de pensamento e anulação da individualidade, nasce a tragédia humana. Descrita por Hannah Arendt em seu livro, “Eichmann em Jerusalém”, como a banalidade do mal.
Segundo Arendt, o “mal radical” descrito por Kant, surgiu por consequência de um sistema no qual toda a humanidade se tornaria supérflua. O nascimento dessa nova modalidade de mal, tem como meta, não o domínio arbitrário das pessoas, mas sim um sistema em que todos sejam desprovidos de pensamento, como fiéis soldados. O primeiro passo neste caminho de subversão da mente humana seria a destruição da individualidade, cujo objetivo é o de transformar o ser humano em ‘coisa’.
No contexto dos estudos de Arendt, o conceito de banalidade do mal dizia respeito ao mal exercido de forma física, na figura de regimes totalitários e ditaduras. O extermínio do povo judeu era a banalização do mal para Alemanha nazista, bem como o encarceramento de opositores do comunismo era para a União Soviética. Os campos de concentração e gulags de hoje são bem diferentes, pois, na era digital, o mal é banalizado através das redes sociais.
Com os avanços tecnológicos oriundos de nossa época, o mal está em todos os lugares. Intangível e onipresente. A internet trouxe muitas benesses à vida humana, mas também propagou o “mal oculto”. A humanidade assiste de camarote, inerte e pasma, aos acontecimentos violentos que ocorrem em todo o planeta. Quando tragédias acontecem, a reação mais óbvia é a de sempre culpar o outro: os pais displicentes, o sistema, o diabo, os políticos, a doutrinação nas escolas, e o grande protagonista de nossa era: o bullying.
Não só os adultos têm acesso a conteúdos malignos, mas nossas crianças e adolescentes também estão suscetíveis a estas gangues virtuais. Vivemos num universo conectado, mas muitas vezes desatento aos verdadeiros perigos que o cercam. Em entrevista concedida ao programa da Jovem Pan, Pânico na TV, o delegado e atual diretor do DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa), Fábio Pinheiro Lopes e o procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Fernando Capez, trouxeram à tona tragédias iminentes de nosso cotidiano. Após os ataques ocorridos nas escolas do Brasil e do mundo, eles ressaltaram os perigos que assolam as instituições de ensino por conta de jovens que sofrem privação social, bullying ou algum tipo de abuso. Estes jovens estão buscando apoio na deep web e na dark web e acabam cometendo atos violentos e impensados. Adolescentes estão indo armados de facas e canivetes às escolas para se defenderem de possíveis ataques disseminados na internet. Os algozes dos massacres, em sua grande maioria, são influenciados por jogos mortais propagados nas redes sociais, como no aplicativo Discord. Lá, eles marcam encontros e discutem sobre temáticas sinistras, sem o monitoramento de órgãos de vigilância cibernética.
“A Deep Web fica abaixo da superfície e é lá que estão cerca de 90% de todos os sites. Essa seria a parte de um iceberg abaixo da água, muito maior do que a parte da superfície. Na verdade, essa Web oculta é tão grande que é impossível saber exatamente quantas páginas ou sites estão ativos simultaneamente.”
O que é a Deep Web e a Dark Web – Kaspersky
O bullying não é novidade para ninguém, existia há milhares de anos e existe hoje numa proporção avassaladora. A xenofobia e o racismo, por exemplo, foram os pioneiros na origem do bullying, pois são um tipo de intimidação e dano verbal ou físico a outrem. Pesquisas indicam que o bullying persiste em níveis epidêmicos entre crianças e adolescentes, delimitando um desequilíbrio de poder entre o agressor e a vítima. Até três quartos dos adolescentes sofrem bullying ou cyberbullying, tais como: xingamentos, cancelamentos virtuais, constrangimento ou ridicularização. E até um terço relata coerção e até mesmo toques inapropriados. Descrito como uma experiência adversa na infância ou adolescência, o bullying afeta tanto a pessoa intimidada quanto o agressor. Ambos correm maior risco de problemas mentais e comportamentais, tanto a curto quanto a longo prazo, incluindo maior risco de ansiedade, depressão e propensão ao suicídio. As vítimas de bullying costumam buscar consolo em outras vítimas através das redes sociais, entretanto, essa busca pode levar a lugares sórdidos e ideais malignos. Uma vez dentro da toca do coelho, o internauta dificilmente irá encontrar saída. Como uma vez Alice indicou em sua jornada no País das Maravilhas: “Não adianta voltar para ontem, porque eu era outra pessoa naquela época.”
As vítimas da subversão psicológica dissipada na deep e dark web normalmente buscam acolhimento, mas acabam sendo acometidas por uma adrenalina viciante. Esse boom de dopamina em um cérebro cujos circuitos ainda estão em desenvolvimento, muitas vezes leva a ensejos e comportamentos desastrosos, e, muitas vezes, com desfechos violentos. No entanto, uma vez que a dopamina passa, a pessoa geralmente se sente pior do que antes. Em entrevista concedida à Revista Oeste, o psicólogo Luiz Ricardo Vieira Gonzaga diz que estes crimes não podem ser atribuídos apenas a uma reação dos jovens aos traumas psicológicos que sofreram. Em alguns casos, há um padrão e uma alusão a outros crimes, em que os autores estão muitas vezes buscando visibilidade e reconhecimento. Jovens estão compensando a falta de atenção e a privação social participando de movimentos extremistas na internet. Nessa fase da vida os hormônios estão em ebulição, e os adolescentes buscam pertencimento. Ter relação com grupos extremistas é de suma preocupação.
Essas gangues virtuais são normalmente comandadas por pseudo-líderes que operam por de trás das telas, e vislumbram brincar de Deus. Geralmente, são seres narcisistas e egoicos, acometidos pelo o que a psicologia chama de “síndrome do pequeno poder”, que se refere a uma atitude autoritária por parte de um indivíduo que, ao receber um poder, usa-o de forma absoluta e imperativa sem se preocupar com as consequências e problemas que possa vir ocasionar. Se antes tínhamos de enfrentar líderes totalitários e ditaduras, o Ocidente do século XXI enfrenta milhares de líderes ocultos. A verdade é que a banalização do mal se tornou fetiche.
A psicanalista infantil Mônica Pessanha em entrevista à Revista Oeste, diz que o uso excessivo dos games pode levar os jovens a cometerem massacres ou até mesmo autoflagelação. Isso porque os jogos estimulam a liberação de dopamina, um neurotransmissor que causa sensação de prazer, euforia e conforto. Para algumas pessoas, a dor pode significar prazer.
“É importante os pais entenderem que não é adequado permitir às crianças e aos adolescentes ficarem horas em jogos violentos. Um dos efeitos da exposição excessiva pode ser a noção de que o uso da violência justifica a resolução de conflito.”
Monica Pessanha – Revista Oeste
Hoje, a polarização que assola as massas deu espaço ao ódio verbal, e não bélico. Como se não bastasse a violência dissipada nas redes e nas escolas, políticos estão atribuindo aos seus oponentes esta epidemia de crimes. Oportunistas do caos estão usando retóricas mal elaboradas e transformando crimes horrendos em palanques políticos. Essas narrativas são embasadas pela mídia tradicional e por pessoas públicas. Após os ataques ocorridos nas escolas, um dos principais comentaristas da GloboNews, Octavio Guedes, atribuiu os atos de violência que culminaram na morte de crianças inocentes ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Ele incita que temos uma sociedade que adoeceu nos últimos anos por conta de discursos de ódio proferidos contra a escola pelo ex-mandatário: “Existe um caldo contra a escola dentro desse discurso de ódio, que eu identifico a extrema direita que levou Bolsonaro ao poder, como a grande propagadora desse discurso.” Essas indevidas atribuições da mídia vem causando mais divisão, trazendo de volta a censura. Instaurar a PL das fakes news que será votada ainda esta semana não impedirá o acesso a conteúdos malignos da internet, pois não restringirá a principal fonte do problema: a deep e dark web. Claramente, o objetivo não é o de proteger nossas crianças e adolescentes, e sim o de reprimir nossa liberdade de expressão.
“A liberdade de expressão é um direito fundamental garantido pela Constituição, e sua supressão poderia nos levar a um estado autoritário, cujas consequências nefastas são vistas em países como Venezuela, Nicarágua e Coreia do Norte”.
Richard Campanari – Gazeta do Povo
Pessoas adotam comportamentos e tomam partido em situações, sejam políticas ou sociais, apenas para conviverem em harmonia com seus pares. Negam a doutrina que está por trás desta militância política e assumem compromissos ideológicos na desculpa para odiar. Com a quantidade de informações que absorvemos diariamente, algumas pessoas podem ter se tornado meras massas de manobra. Mas outras estão apenas surfando a onda e banalizando o mal indiscriminadamente. Seus desejos mais intrínsecos podem estar ligados apenas ao ‘vazio do pensamento‘, descrito por Hannah Arendt. A este vazio, podemos atribuir aquele antigo provérbio: “mente vazia, oficina do diabo.” Com uma pitada de adrenalina proporcionada pela internet, estamos transformando nossos jovens em pequenos monstros.
“Falar da banalidade do mal, interdita, de fato, toda dimensão demoníaca, toda maldade essencial, toda maldade inata e, mais amplamente, todo móvel ancorado na depravação, na cobiça e em outras paixões obscuras.”
Nádia Souki – Hannah Arendt e a Banalidade do Mal
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